Pressão dos dois lados





A vida não anda fácil para as associações representativas das empresas de telecomunicações no diálogo com o governo e com os órgãos reguladores. Em agosto, os dois principais eventos setoriais mostraram que aquilo que os empresários buscam está longe de ser aquilo que o governo quer deles. E mais: nem mesmo dentro dos setores está fácil encontrar unidade de discurso. Com intervalos de uma semana entre um e outro, aconteceram no mês de agosto o 18º Congresso da ABTA e o 54º Painel Telebrasil. No caso da ABTA, trata-se da mais importante feira e congresso voltado ao mercado de TV por assinatura e triple play. No caso do Telebrasil, é o encontro anual das associações do setor de telecomunicações. Para as empresas de TV por assinatura o dilema a ser enfrentado é a pressão do governo, sobretudo da Anatel, para a flexibilização e entrada de novos concorrentes, o que traria crescimento ao mercado. Para as empresas de telecomunicações em geral, a pressão é para a redução de preços e melhoria dos serviços de banda larga. O problema é que nenhum dos dois setores está conseguindo dar respostas à altura das cobranças que estão sendo feitas.
Dois temas centralizaram os debates institucionais do Congresso da ABTA: a aprovação do PLC 116/2010 (antigo PL 29, que cria novas regras ao mercado de TV paga) e a abertura de novas concessões de cabo pela Anatel. Os dois fatos estão relacionados e têm o mesmo objetivo: permitir a entrada de mais grupos no setor. No caso da mudança legal, a possibilidade de entrada de empresas de telecomunicações é concreta e está explicitamente colocada. No caso da abertura de novas concessões, a Anatel nega que esta seja a verdadeira intenção, mas nove entre dez analistas dizem que é isso que acontecerá se o processo for adiante da forma como está desenhado. A associação de operadores de TV por assinatura já havia sinalizado, ainda em junho, a disposição de não mais resistir ou tentar segurar o projeto no Senado. A razão é simples: quanto mais o projeto atrasa, maior a chance de que essa “abertura” se dê via Anatel, o que é ruim para quem já está no mercado já que outros entraves que poderiam ser resolvidos com a revisão do marco legal continuariam atrapalhando a vida das empresas. Por exemplo, a limitação de capital estrangeiro e regras assimétricas de outorga e exigências de programação para operadores de cabo, de um lado, e operadores de DTH e MMDS de outro.

Mensagem de peso

A ABTA abriu o evento com esse discurso. Alexandre Annenberg, presidente da associação, foi claro: “sempre criticamos o projeto e continuamos achando que ele está longe de ser o ideal, mas é o que se pode ter agora”, disse. Mas a manifestação mais contundente nesse sentido veio de Roberto Irineu Marinho, presidente das Organizações Globo e palestrante principal da abertura do evento. Para Roberto Irineu, as cotas de conteúdo nacional, que até hoje foram a maior razão de objeção do grupo ao PL 29 e a uma reforma na legislação de TV paga, são hoje um problema menor. “Entendemos que outros vejam as cotas como uma necessidade. Por princípio, discordamos delas por não privilegiar a qualidade, mas acreditamos que a busca pelo consenso é importante no momento que vivemos”, disse. Por fim, Marinho afirmou que, se a nova legislação vingar, “e tudo indica que isso acontecerá”, os prognósticos para o setor serão positivos. “Acreditamos que o número dos domicílios com TV por assinatura pode mais do que dobrar nos próximos cinco anos. Se em 2009, havia 7,5 milhões de assinantes, acreditamos que em 2015 esse número pode chegar a mais de 15 milhões”, disse.

Roberto Irineu Marinho lembra que os canais brasileiros estão entre os que têm maior audiência na TV por assinatura brasileira. Das 20 maiores audiências na TV paga, nove são canais brasileiros. Ele aponta que não há riscos de uma disputa desigual com grupos estrangeiros por conta da competência dos grupos nacionais, que entendem o gosto da audiência brasileira. Outro ponto importante para garantir o sucesso dos canais brasileiros é a separação da distribuição e da programação e produção de conteúdo. Para Marinho, os riscos de uma disputa desigual com grupos estrangeiros são minimizados, ao se adotar a quebra da cadeia de valor, “a espinha dorsal da proposta de nova legislação”. “Numa linguagem muito simples, a regra será esta: quem programa e produz não distribui; quem distribui não programa nem produz”, disse.

Marinho diz que já há atualmente uma concorrência desigual, com produtores e programadores brasileiros disputando com estrangeiros de porte global. Para ele, a entrada das empresas de telefonia na produção e programação traria mais um desequilíbrio, difícil de ser suportado pelas empresas brasileiras. “A proposta de nova legislação é sábia ao dividir bem os papéis dos atores em nosso mercado. De um lado, ao acabar com as restrições ao capital estrangeiro e abrir o mercado da distribuição às empresas de telefonia, a nova legislação permitirá que a TV por assinatura se expanda mais rapidamente, tornando-a acessível a um maior número de brasileiros. De outro lado, ao impedir que as empresas de distribuição se envolvam na produção e na programação, permitirá que as empresas brasileiras do setor compitam entre si numa saudável concorrência”, afirmou Marinho na ABTA. Para o presidente das Organizações Globo, a abertura do mercado de cabo às operadoras de telecom e a quebra da cadeia de valor só fazem sentido se vierem juntas. “Uma depende da outra para que o mercado siga num ambiente saudável. Não faz nenhum sentido, portanto, a tentativa da Anatel de abrir o mercado às telefônicas sem nenhuma das salvaguardas da nova lei”.

Novo marco

Nesse ponto, os eventos da ABTA e da Telebrasil dialogaram. Uma semana depois, era Johnny Saad, presidente do grupo Bandeirantes, que dava a sua mensagem no evento das teles. Para ele, “na discussão do novo marco, acho que quem participou da Confecom deve ter prioridade”, disse, referindo-se à participação da Abra, associação de radiodifusores da qual a Band faz parte, na Conferência Nacional de Comunicações. Saad referia-se ao trabalho de revisão do marco legal das comunicações, à cargo da Secretaria de Comunicação da Presidência da República e que deve chegar a um anteprojeto de lei de comunicações até o final do ano. O professor da Universidade de Brasília Murilo Cesar Ramos resumiu a situação durante o evento da Telebrasil. “Se existe uma coisa que é certa é a necessidade de uma revisão do modelo, isso é um imperativo. Isso significa mudanças na Lei Geral de Telecomunicações e reforma na legislação de radiodifusão, de forma paralela ou convergente à LGT”. Ramos disse que em um próximo governo, qualquer que seja, é importante recuperar o papel político do Ministério das Comunicações como formulador de políticas. “É preciso definir quem faz política pública e quem regula o setor. É preciso entender como fica a relação entre Anatel e a Telebrás. E é preciso pensar, desde já, no futuro do serviço público, notadamente do STFC, e como será o final dos contratos de concessão em 2025”.

Johnny Saad também voltou a atacar a forma como a Anatel está conduzindo a liberação do mercado de TV a cabo. “Nada em princípio contra a abertura desse mercado, sempre apoiamos isso, mas achamos que é necessário haver regras, e não no meio das férias sair com uma coisa nova. Não foi uma boa forma”, disse, referindo-se à cautelar da Anatel que suspendeu os efeitos do planejamento de TV por assinatura. Essa cautelar foi, por outro lado, o elemento que esquentou os debates da ABTA 2010. Receosos de que a agência poderia continuar no ritmo intenso projetado no final de maio para abrir o mercado, operadores de todos os portes queriam saber, afinal, quais seriam os planos da agência para as novas concessões.

Duas medidas

“O debate que está colocado no mercado é sobre a convergência, o país está crescendo e há demanda por mais outorgas. Não faz sentido segurar mais tempo. A Anatel patrocinou, nos últimos anos, uma reserva de mercado”, disse o conselheiro da Anatel João Rezende, um dos principais defensores da abertura do mercado de TV a cabo. Ele também defendeu a forma como a Anatel está propondo esta abertura: sem restrições ao total de outorgas e com valores mínimos. “A superintendência de comunicação de massa já fez estudos que mostram que em mais de cinco mil municípios o valor presente líquido que seria a base para o cálculo do valor da outorga dá negativo. Ou seja, o preço administrativo é o máximo que se pode cobrar”, disse.
Para João Rezende, existe uma certa hipocrisia do empresariado, sempre liberalizante, em pedir uma reserva de mercado. “Vejo em todos os setores uma queixa sobre o excesso de presença do Estado na economia e o ‘custo Brasil’. Só em TV por assinatura, quando propomos flexibilizar o mercado e reduzir os custos de entrada, há reclamação. Parece que há uma tentativa de bloquear a entrada de novos operadores”.

O setor de TV por assinatura, entretanto, pede prudência à Anatel. Para André Borges, diretor jurídico da Net Serviços, seria mais apropriado que a Anatel aguardasse a definição de um novo marco legal que estabeleça condições isonômicas entre operadoras de TV por assinatura e telecomunicações. “A Net sempre buscou opções de expansão e não quer nenhuma reserva de mercado. Vamos pedir várias licenças porque a indústria vive um momento positivo. Mas isso tem que acontecer dentro do marco legal e regulatório atual, com o planejamento existente, ou aguardar um novo marco legal”, disse André Borges. Para Alberto Umhof, operador que desde 1990 explora TV a cabo no Brasil e hoje dirige a operação em São João da Boa Vista/SP, o compartilhamento de rede e infraestrutura é fundamental. “Não adianta apenas me dar uma concessão de R$ 9 mil para operar porque eu precisarei construir a rede, e para isso preciso de dinheiro e de acesso aos postes. Se alguém chegar antes e fechar o acordo com a empresa de energia, eu não tenho como entrar”, disse o executivo. Ele também se queixou das linhas de crédito que o BNDES oferece a pequenos operadores. “Se você é um grande grupo, é fácil levantar dinheiro no BNDES. Mas se você é um operador pequeno, um empreendedor, a única opção do BNDES é o cartão de crédito, e isso não garante a construção da infraestrutura em uma cidade”, disse Umhof.

Apoio e críticas

Mas ao que tudo indica a decisão da Anatel de abrir o mercado de cabo tem respaldo do governo. O coordenador do comitê de inclusão digital do governo e assessor da Presidência da República, Cezar Alvarez, em discurso durante o Painel Telebrasil, foi enfático ao elogiar a iniciativa da agência, que em maio suspendeu os efeitos do planejamento de TV por assinatura e iniciou o processo de análise dos pedidos acumulados de TV a cabo. Segundo Alvarez, “a demanda por TV por assinatura pode ajudar a impulsionar a construção de infraestrutura de acesso”. “A Anatel, em bravíssima decisão, decidiu dar andamento ao processo de concessões e o PLC 116 (PL 29) também está para ser aprovado”, comemorou Alvarez. Foi a primeira vez que um representante do Palácio do Planalto falou abertamente sobre a polêmica decisão da agência.

Mas o papel de Alvarez durante o Painel Telebrasil era muito menos o de elogiar e muito mais o de cobrar as empresas de telecomunicações. Ele reiterou as críticas que o governo já fez em outras ocasiões à cobertura, preço e velocidade dos serviços banda larga no Brasil. “Hoje, 92% da população brasileira tem zero kbps de acesso”, disse. Segundo Alvarez, uma das medidas para aumentar a oferta é a liberação de radiofrequências. Mencionou especificamente a licitação da banda H, afirmando que haverá regras de cobertura em troca de preços mínimos menores e indicou um novo condicionante que pode surgir: “por que não (estabelecer) também limites de preços aos serviços?”, perguntou a uma plateia repleta de executivos de telecom, a maior parte desconfortável com a recriação da Telebrás e seu papel no Plano Nacional de Banda Larga. Alvarez ressaltou também que a Telebrás ajudará a Anatel no trabalho de entender os modelos econômicos do setor. “A Anatel não pode ficar sem informações, e a Telebrás pode e servirá como parâmetro para a definição de preços. A existência da Telebrás facilitará a expansão das redes de fibra em obras de infraestrutura. A Telebrás institui um processo de desverticalização menos invasivo, estabelecendo concorrência, na mesma lógica da separação estrutural, mas sem intervir nas empresas”.

Lição de casa

O tema da banda larga já havia sido discutido no Congresso da ABTA, com uma palestra do ex-assessor especial da FCC, o brasileiro Carlos Kirjner, que coordenou os trabalhos de formulação do plano de banda larga dos EUA. Segundo Kirjner, se a inclusão digital é um objetivo nacional, é fundamental que a indústria e o governo trabalhem de forma conjunta para levar a banda larga às camadas mais pobres. “Se a penetração da banda larga nas camadas mais ricas já é alta, a única forma de se manter um crescimento sustentado é levando o serviço para os mais pobres também, com renda inferior a um ou dois salários mínimos”, explicou durante a ABTA.

Kirjner também ponderou outros aspectos importantes no plano americano, tais como ações que estimulem a competição entre as teles; a revisão e mudança dos direitos de passagem de cabos e de estações radiobase; transparência e ações de longo prazo; reforma de regras de atacado (backhaul) e de uso de microondas; competição entre fabricantes de set-top boxes; e desenvolvimento de aplicações para os usuários finais. Curiosamente, alguns desses aspectos acabaram sendo levantados “extra-oficialmente” pelos participantes do Painel Telebrasil, mas não entraram no documento final que a associação elaborou para consolidar suas propostas. Uma das empresas que tocou no assunto foi a TIM. Mário Girassole, diretor de regulamentação da operadora italiana, criticou as próprias empresas de telecomunicações por não reduzirem os custos de transmissão das redes de backbone e backhaul. “A banda larga tem que resolver um problema de infraestrutura e abertura das redes. O custo de transmissão cresceu 250%. Se a infraestrutura está na mão de uma empresa só, em geral uma concessionária, esse custo no Brasil é alto. O mecanismo de compartilhamento é ineficiente”, disse. “O custo de transmissão tem que entrar no Custo Brasil. E é uma parcela que as empresas podem fazer o dever de casa”.

Girassole disse também que a Telebrás tem um papel importante nesse cenário. “Telebrás é infraestrutura, e toda infraestrutura é boa. Se a Telebrás é uma alternativa para comprar capacidade onde não tem alternativa, talvez seja uma coisa boa. Nesse jogo a Telebrás é um elemento a mais”. A TIM provocou as demais empresas a darem uma resposta ao governo. “Será que fazendo nosso dever de casa não teremos credibilidade maior, não teremos mais peso?”. O Painel Telebrasil terminou com uma nova edição da Carta do Guarujá, documento oficial que sintetiza propostas e ideias do setor de telecomunicações. Este ano, a carta não falou de banda larga ou de um plano nacional de inclusão digital, como havia acontecido em 2009. Segundo Antônio Valente, presidente da Telebrasil, a ideia foi justamente apenas apresentar aos candidatos (ao novo governo) aquilo que pensam as empresas. Além de pedir a realização de reformas estruturais e mostrar preocupação com reformas como a trabalhista, a Telebrasil volta a tratar de questões tributárias e de uma regulamentação convergente. E no que talvez seja a única “novidade” efetiva da Carta do Guarujá, a associação se compromete a trabalhar em um conjunto de metas a serem colocadas ao mercado para a expansão dos serviços (sobretudo banda larga), e “trabalhar para que elas se tornem realidade”.

Samuel Possebon

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