O olhar urbano já se habituou ao emaranhado que polui a paisagem, mas, quando algum cabo se rompe, fica difícil encontrar o fio da mead
Taís Seibt
Cada vez mais linhas atravessam o horizonte, mas parece até que ninguém se importa. O olhar urbano já se habituou ao emaranhado que polui a paisagem. E, quando algum cabo se rompe, fica difícil encontrar o fio da meada.
Neste mês, a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) anunciou o desligamento programado do serviço na Rua Guadalajara para trocar um poste de madeira por um novo, de concreto. Após uma tarde inteira sem energia, a luz voltou, mas o telefone caiu.
Pela janela, o aposentado Nataniel de Jesus Santos, 77 anos, avistou os cabos rompidos. E ali começou a dor de cabeça do aposentado, que, mesmo carregando Jesus no nome, perdeu a estribeira – a CEEE informa que quem deve solicitar o conserto é o usuário, que assim precisa gastar o dedo no teclado e os créditos do celular no contato com a empresa de telefonia.
– Entra aquele menu: “se você quer falar com Deus, disque 1, se quer falar com o diabo, disque 2, se quer falar com um de nossos atendentes, disque 8”, e aí volta todo o menu. É de tirar a paciência – reclama Nataniel, que resolveu pedir ajuda ao Procon.
Se, com o serviço interrompido já é difícil, imagine quem se atreve a reclamar de um cabo abaixo da altura mínima – aumentando ainda mais a largura da teia de fios sobre a calçada. A psiquiatra Maria Inês Lobato tentou, mas a empresa respondeu só ter obrigação de fazer reparos no caso de o sinal ser interrompido. De fato, não há norma que obrigue a retirada nem mesmo de fios inativos. Assim, na imensa maioria das vezes, o consumidor encerra o contrato com a operadora, mas o cabo permanece no local, como um monumento à falta de regulamentação da paisagem urbana.
– As pessoas acham que isso é só uma questão de estética, mas o bem-estar que te dá abrir a janela do apartamento e ver a paisagem, em vez de ver aquele monte de fios, é muito importante – comenta a médica.
Incomodada com o descaso, Maria Inês saiu com a filha Beatriz, 13 anos, a caminhar e fazer fotos para postar em uma página criada no Facebook, com apoio dos sobrinhos Antônio Tovo, 30 anos, Mariana Goellner, 30 anos, ambos advogados, e Rafael Marques, 34 anos, arquiteto.
– Enterrar os fios teria impacto inclusive na recuperação da arquitetura, que ficaria mais valorizada, e seria fundamental para cumprir a norma de acessibilidade, aumentando o vão livre de circulação, com a retirada dos postes das calçadas – diz Rafael.
O objetivo do site é dar visibilidade ao problema e forçar as autoridades a pensarem em políticas que permitam o aterramento nas áreas de interesse cultural, aproveitando a realização de obras como as dos corredores de ônibus e das perimetrais.
Em São Paulo, uma iniciativa parecida chegou até o Ministério Público Federal, que abriu inquérito para apurar por que a cidade não enterra suas redes. Após uma onda de chuva no verão de 2011, que deixou um bairro inteiro sem luz por mais de uma semana, o jornalista Leão Serva passou a postar diariamente no Instagram fotos com a legenda “malditos fios”, que depois virou hashtag e se popularizou entre seus seguidores. Serva está preparando um livro de fotos com esse tema, que deve sair em novembro:
– Já tinha publicado um livro de fotos sobre o projeto Cidade Limpa, que foi quando São Paulo regulou a propaganda em outdoors. Isso mudou o visual da cidade, e os fios ficaram ainda mais visíveis. Então, as fotos dos malditos fios viraram um grito diário para que a limpeza da cidade continue.
É fácil perceber que a maldição dos fios não é exclusividade paulistana. Mas, curiosamente, a lei que tenta minimizar a poluição visual em Porto Alegre não contém uma linha sequer sobre a plasticidade da fiação.
O nó que se vê nos céus começa no setor público
O emaranhado que se vê sobre as calçadas se reproduz no poder público, a quem caberia o poder de mudar o cenário dos céus urbanos. A empresa de energia elétrica loca os postes para o cabeamento de operadores de telecomunicações, mas alega que a decisão de enterrar ou não as redes depende da administração pública.
– A rede subterrânea tem custo 10 vezes maior, e isso teria de ser repassado ao consumidor. Nenhuma empresa fará esse investimento. Isso só ocorrerá se partir da prefeitura, que poderia locar os dutos para as companhias – sugere o engenheiro do setor de distribuição da CEEE, Rubens Wawrick.
A teia de aparente desinteresse pela questão só aumenta. A Secretaria de Obras diz que apenas executa o que está no projeto e argumenta que o planejamento urbano compete à Secretaria de Urbanismo, que, por sua vez, atribui à Secretaria de Gestão a previsão de investimentos nesta área. Esta, por sua vez, delega à companhia de energia o poder de decidir sobre o tipo de rede a ser implantada. E, assim, fecha-se o ciclo, sem que ninguém assuma a frente da questão.
– Um projeto viário considera desde fatores ambientais até o tipo de rede, mas as diretrizes da Agência Nacional de Energia Elétrica e da própria CEEE não avançam para o sentido de enterrar a fiação, o que certamente representaria um ganho paisagístico imenso para a cidade – diz o engenheiro Rogério Baú, responsável pelas obras de mobilidade urbana da Capital.
Cidades da Serra enterraram as redes em pontos turísticos, como a Avenida Borges de Medeiros, no centro de Gramado. No caso de Antônio Prado, além da questão estética, havia o risco de incêndio pela proximidade da fiação com o casario de madeira, explica a arquiteta Anna Maria Hennes, que fez o projeto luminotécnico da obra:
– A viabilização desses projetos passa por uma negociação ampla, com governo e concessionárias. Contudo, como os investimentos são elevados, é importante haver critérios de escolha para áreas de maior relevância.
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